No meio do caos, a palavra lapidada. E assim se fez a poesia. A poesia
que emociona e faz sonhar. Que acalma. Conspira. Revela segredos. Inventa caminhos. Reinventa amores. Dilacera corações. Perdoa.
E deixa uma gente tentando entender o sentido da vida. Aliás, a poesia devia existir para isso. Não, isso não é trecho de
obra poética. Nem sarau repleto de intelectuais sisudos discutindo a metafísica transcendental do ser. É apenas
a poesia — a boa e simples poesia — que invadiu a rua. Deixou de ser incompreensível. Saiu dos livros. Fugiu das
bibliotecas empoeiradas. Ganhou pernas. Mostrou a cara. Provou que pode ser fácil. E chegou aonde jamais se imaginaria: às
paradas de ônibus. Sim, a poesia em Brasília agora habita o lugar de chegada e partida dos coletivos lotados. E uma gente,
fora e dentro dos ônibus, pára e se emociona. Todos os dias, no meio da pressa e da desordem. Só isso já seria poesia.
A
idéia surgiu da cabeça de um dos artistas plásticos mais criativos e inquietos da cidade, Henrique Gougon, de 58 anos. A parte
de frente dos prismas colocados em cada ponto (aqueles que originalmente deveriam servir para indicar o trajeto dos ônibus,
mas que estão detonados pela pichação e vandalismo), ele preencheria com poesia.
Idéia concebida, plano em ação. Junto com os Loucos de Pedras, grupo de artistas da cidade que trabalha
com arte musiva (feita com mosaicos), Gougon idealizou como faria em cada parada. Primeira missão: escolher os poetas que
mais se identificassem com a cidade. Depois, a poesia de fácil leitura e compreensão. Aquela que qualquer pessoa pudesse ler
e entender.
E assim se fez. Primeira parada: 705/706 Sul. Poeta: Nicolas Behr. Nos dois prismas —
que os artistas plásticos chamam de totem — o primeiro trabalho, todo em pedras e pastilhas de vidro. O mosaico levou
um mês para ficar pronto e foi produzido no espaço cultural da 508 Sul. Depois, levado até o ponto. E um serralheiro terminou
de montar as placas.
Em cima da obra, a clara poesia: “Nem tudo que é torto é errado. Veja as pernas
de Garrincha e as árvores do cerrado”. O lugar, que era feio e malcuidado, virou atração. Quem está dentro do ônibus,
espicha a cabeça para olhar. Torce para o motorista demorar mais um pouquinho. Quem está fora, pára. Olha. Lê e se distrai.
Reginaldo Carlos da Silva, de 43 anos, vendedor de balas que está ali há 15, admite que a poesia encheu
a parada de beleza. ‘‘O ponto ficou mais bonito. O povo pára pra ler, mesmo com pressa. Às vezes até copia’’,
entrega.
Sonho e solidão A segunda parada a ser contemplada com a obra de arte dos Loucos de Pedra foi
a da 711 Sul. Lá, o autor escolhido foi o poeta Cassiano Nunes, de 83 anos. Um dos mais consagrados escritores de Brasília.
E um dos que mais retrataram a cidade que escolheu para morar faz mais de 40 anos.
Confeccionado na casa
de Gougon, o totem é todo em granito, mármore, espelho, cerâmica, vidro quebrado de pára-brisa e pastilhas de vidro. Cada
um dos artistas trouxe um pouco do material. E assim, juntos, produziram a poesia da 711 Sul.
O poeta
Cassiano, que se recupera de problemas de saúde e mora duas ruas atrás do ponto de ônibus, há dois meses foi convidado para
dar um passeio até a parada. No caminho, comentava com os artistas sobre o ponto de vandalismo em que se transformaram as
paradas.
Ao chegar à frente do prisma, foi tomado pela emoção. Não acreditou no que seus olhos viam. Lá
estava sua poesia transformada em obra de arte. No meio de uma parada de ônibus, para todo mundo ver:
—
‘‘Moro numa canção — área quase sitiada entre o sonho e a solidão. Como posso queixar-me de solidão, se
possuo a noite e a canção? A noite é tão vasta que me perco nela! Amor! Acenda a estrela da tua janela!
A
pedido do Correio, o poeta Cassiano voltou ao lugar onde foi homenageado. Andando a passos lentos, deixou a emoção falar mais
que as palavras: ‘‘A poesia é uma forma de realização. De humanismo. É o que todos procuram: a valorização da
vida e o respeito entre as pessoas’’.
E, num dos momentos mais emocionantes da manhã de ontem,
o escritor fez uma revelação, um misto de orgulho e sensação de dever cumprido: ‘‘Moro nessa mesma casa há 38
anos. Depois da poesia no ponto de ônibus, todos os meus vizinhos agora sabem o que faço. Sabem que sou poeta’’.
No meio do caos A diarista Maria José de Castro, de 42 anos, descobriu que aquele homem de andar comedido
é poeta. Descobriu que poesia é fácil. Que pode ser lida e feita por qualquer um. Aprendeu a sentir o gosto que as palavras
impregnam na memória. ‘‘Vou daqui até Ceilândia repetindo os versos que li na parada. Nem vejo a viagem passar’’.
E planeja: ‘‘Tô até pensando em escrever também. Acho que posso fazer isso...’’
Enquanto
esperava o ônibus que a levaria a Taguatinga, a estudante Simone de Jesus Fonseca Pires, de 18 anos, apaixonou-se pela poesia
no meio do caos. ‘‘Muda a cara do lugar. Deixa menos feio. Dá vida.’’
O vendedor
de balas da 711 Sul, Manoel Pereira Neto, paraibano de 25 anos, tem vivido dias agitados depois que a parada onde trabalha
foi invadida pela poesia. ‘‘Quando tá muito sol, eu coloco minha cadeira lá, bem no meio dos dois prismas. Aí,
o povo que passa de ônibus pede, da janela, pra eu sair do lugar. Eles querem ler a poesia. Falta quebrar o pescoço...’’
Na 707/708 Sul, foi finalizado o mais atual trabalho da equipe de Gougon. Lá, a poesia de Fernando Mendes
Vianna provoca e atiça. ‘‘Dentro da pedra esperar. Respirar. Ruminar a pedra... E descobrir a palavra que abre
a pedra’’.
Ao ver as paradas repletas de poesia e sua obra de arte provocando a reação positiva
das pessoas — ainda longe do vandalismo —, Henrique Gougon revela: ‘‘Nossa idéia é fazer a antologia
poética de Brasília em cada ponto de ônibus da cidade’’. Depois, explica o verdadeiro sentido do seu trabalho:
‘‘As pessoas vão perceber que pode ser muito simples fazer poesia’’.
Que venham
os poetas e suas poesias, então!
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